quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Fornecedor de meninas

Nesses 12 meses, eu tenho vivido a experiência mais transformadora e desafiadora da minha vida: ser pai. Com muita leitura e paciência, busquei me aproximar, e me preparar, para a etapa que até hoje gera mais fascínio e medo para a humanidade. Mas, neste interim, surgiram coisas prazerosas, como contar para os amigos que eu seria pai. Porém, assim como a inocência da felicidade da chegada de uma filha nos cega, a maldade no discurso dos outros nos faz rapidamente abrir os olhos.
A chegada do bebê foi algo fantástico para toda a minha família e para alguns amigos. Obviamente, existiram "amigos" que mais serviram de desestímulo, ou para que eu pudesse ver em um espelho como eles próprios se sentiam sobre ter filhos. Em geral, a experiência de contar sobre o bebê chegando na minha vida foi maravilhosa, com uma recepção carinhosa e cheia de esperança. Porém, isso mudou quando eu soube que quem viria ao mundo era a Cecília.
Não da minha parte, ou da mãe dela. Ambos ficamos em êxtase sabendo que vinha uma menina para completar a nossa família. Mas a partir do momento em que soubemos que estávamos esperando uma criança do sexo feminino, de maneira extremamente sutil ou não, as coisas mudaram.
Lembro como se fosse hoje um homem e uma mulher a quem contei a novidade abrirem os braços para mim enquanto, em meio a dentes, me falavam: - Parabéns! Agora tu é fornecedor!
Esta frase soou com o estalo de um tapa na minha cara. Como disse, a inocência da vitória daquele momento acabou baixando a minha guarda e desmascarando a minha ignorância frente a maldade inerente das pessoas.
Em um instante eu era pai de um bebê e no outro eu era fornecedor de meninas.
A maldade desse comentário me fez começar a pensar em o quanto não inocentes são as atitudes que somos levados a tomar quando sabemos que é uma mulher que nasce. De um instante para outro, o nosso bebê se torna princesa, boneca e, apesar da tenra idade, carne no mercado.
O absurdo que esta palavra carrega está a um momento de reflexão para se descortinar. Dizermos a um pai ou mãe que ele é fornecedor, é simplesmente dizer que a menina é um objeto. Que obedece a uma demanda, a regras, a mediações de uma cultura que submete as mulheres, mesmo dentro do útero a um mundo que, transfigurado de fitas e cor de rosa, esconde um universo de obrigações e expectativas impostas para aquele ser que nem veio ao mundo.
Beauvoir nos diz "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo.
Essa citação desmascara como a mulher que conhecemos, com todas suas obrigações, é fruto de uma opressão que, imaterial, atravessa paredes, carne, ossos e tempo para impregnar de culpa as nossas crianças. Minha filha já nasceu sob ameaças: Que a Cecília se cuide com o meu filho hein?
Minha filha já nasceu com obrigações de vestimenta. Minha filha já nasceu com uma posição no mercado da sociedade, como demanda para o macho, que nem concebeu sua existência, mas já é privilegiado.
O desafio da criação é educar uma criança que quando for para a escolinha, vai encontrar uma sociedade que a etiqueta como se fosse gado, a julga como um constante concurso de beleza e conduta, e a condena, independente de sabermos que o pecado original é somente uma desculpa para mais um pouco de culpa.
Eu não sou um fornecedor, nem minha mulher é uma fornecedora. Se tivessemos um filho homem, seríamos fornecedores? Seria dito esta frase cheia de conotação negativa? Eu acredito que não. Pois, como vimos na citação de Beauvoir, a construção da posição do gênero é algo que parte da sociedade e não do indivíduo.
Minha filha não é princesa, boneca, produto ou demanda. Minha filha é um indivíduo, que terá total liberdade e poder para decidir o que lhe dá prazer e o que lhe traz felicidade.
Talvez o problema seja por inocente reproduzirmos discursos e narrativas que estão infestadas de machismo, e mantermos este ciclo vicioso de sitiar as nossas meninas. Mas manter esse pensamento sem questiona-lo é um dos motivos para que estejamos em ritmo acelerado ao estabelecimento da imbecilidade cultural.
Nossas crianças são crianças, sem gênero. Sem obrigações, sem cores definidas nem brinquedos exclusivos para cada um deles. Precisamos criar nossas crianças para questionarem, pois estamos falhando miseravelmente, mesmo do alto da nossa idade de adultos.
Cecília não é princesa, Cecília é Rainha, o resto: nadinha.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Incomensurável

Eu sempre fui bom com as palavras. E ao meu ver, isso nem é algo para se vangloriar, visto que basta uma vida inteira com o nariz dentro dos livros para que tenhamos afinidade com as mesmas. As palavras, assim como as pessoas, só se tornam familiares com o tempo, com a frequência vem a intimidade. Com o tempo, as letras se tornam cúmplices, confidentes. Quando se conta com a cumplicidade, qualquer trabalho se torna mais fácil. Quando temos um problema, ou alguma missão, as palavras se oferecem prestativas. Até mesmo aquelas mais arredias, esquecidas nos cantos das nossas referências, saltam a luz. São companheiras, ávidas por ajudar aqueles a quem são fiéis a elas.
Por esse motivo, nunca tive problema em dimensionar sentimentos que para a maioria são desafiadores, como amor, paixão, dor e etc. Era fácil, acessível. Eu conseguia ver o horizonte e dimensionar pela magnitude das palavras cada sentimento ao qual eu tinha contato. Mesmo que não para os outros, me satisfazia em escrever para mim. 
Mas isso mudou. Cheguei a uma etapa da vida em que estou em contato com magnitudes que eu, do alto dos meus livros, só posso encarar com admiração. E as vezes medo.
Meus sentimentos, antes horizontes guardados e sitiados por cercas, se transformaram em infinitos. Quando falo sobre o que sinto em contato com aquela que amo, me sinto como em um barquinho no meio de um mar infinito. Não consigo mensurar os limites, nem mesmo se eles existem. 
Meu olhar crítico, treinado, se perde em um sem fim horizontal. Meus sentimentos, de latifúndios tornaram-se oceanos.
Cada sorriso, cada evento é tão gigantesco, que eu me sinto como se não conseguisse com as minhas pernas impor a distância necessária para ver os limites do amor. E quanto mais busco ver ao longe, na vã esperança de dimensionar na petulante abstração humana, noto que não existem limites, não existem bordas. Ela é como o universo, infindo, fértil, gigante. Procurei então palavras para que eu tentasse arranhar o o firmamento da sua dimensão. Encontrei a palavra incomensurável.. Incomensurável, é maior que imenso. São distâncias tão gigantescas que não possuem quiçá  referência possível. São medidas sem par, tamanhos incompreensíveis. Meu sentimento por ela é incomensurável, pois eu simplesmente não consigo ver suas margens. Quando me perguntam o que eu seria capaz por ela, eu posso dizer que não faço ideia do que eu não faria. Longe de ser um clichê, é um atestado da minha insignificância frente a infinitude morna e agridoce da sua presença. Então eu, que sabia muito, hoje digo: não sei. Eu só sei que faria.
Enfim, me vi frente a frente a um desafio que não conseguirei jamais cumprir. Pois ao incomensurável só toca existir, ser. E a quem o vê, só resta admirar.

domingo, 10 de julho de 2016

As Beatas

Consegui essa história com grande dificuldade, não existem fontes confiáveis para a mesma. Ela não está em livros, não está na internet e você não vai encontrar ninguém em sã consciência que queira conversar sobre tal absurdo. Por esse motivo, esta história foi conseguida em uma entrevista com um dos moradores do Hospital Psiquiátrico São Pedro, da cidade de Porto Alegre. O homem, que muitas vezes se mostrava muito aflito conversou comigo sobre "As Beatas" de maneira extremamente coerente, o que me surpreendeu. Visto que ele é considerado como alguém que não possuí discernimento de datas ou mesmo lugares. 
Morador do instituto há mais ou menos 30 anos, o entrevistado me falou que ali ele se sente seguro, pois viver no "lado de fora" é estaria a mercê das Beatas como o mesmo se refere.
Este morador iniciou o seu relato contando que ele fazia parte de uma pequena empresa regida por um multimilionário no interior do estado do Rio Grande do Sul. Procurando emprego, ele encontrou essa oportunidade de trabalhar como faxineiro nesse local afastado. O patrão, além de salário, provia casa, alimento em troca de pouquíssimo tempo de descanso, porém, muitas pessoas ainda procuravam esse emprego, tendo em vista o polpudo retorno em se viver em um local afastado fazendo trabalhos que a maioria das pessoas não gostaria de fazer.
No início, segundo o relato, ele fazia a limpeza de um grande galpão que diariamente se mostrava sujo de excrementos de animais e sangue, nada surpreendente tendo em vista que ele havia sido contratado por uma suposta fábrica de carne. O que o deixava confuso, é que este salão era a única construção em um raio de muitos quilômetros. Não haviam animais, não havia matadouro, não havia equipamentos a vista. Só um grande salão em um galpão tinindo de novo com mesaninos protegidos por janelas espelhadas. Ele dividia o seu trabalho com mais umas 14 pessoas, todos parecendo de lugares diferentes e que não se interessavam em manter uma conversa além do básico. Todos pareciam esconder algo.
O fato de não conversarem muito, se dava também pelos equipamentos que utilizavam. Sob a prerrogativa de desinfetar o local, grandes ventiladores no teto faziam cair uma chuva de água e desinfetante enquanto as pessoas ali trabalhavam. No início, o nosso entrevistado se perguntava o que era aquela substância que caía, mas durou pouco a sua curiosidade. Pois essa substância que todos respiravam, causava um estupor que os fazia ser cada vez mais passivos e relutantes em deixar o local de trabalho, chegando ao ponto de muitas vezes se encontrar pessoas dormindo do lado de fora do galpão. Durante anos ele trabalhou no local, dedicando seus dias a limpeza e ao vício naquela chuva tóxica, e as noites a se atirar na cama e dormir um sono sem sonhos.
Seu dinheiro crescia, o contador da empresa sempre lhe mostrava o seu saldo bancário com muitos números se acumulando, mas estranhamento ele afirma que não queria sair de lá. Até o momento em que da janela do galpão ele viu a visão que modificou a sua vida. Em um dia de trabalho, ele seguia varrendo e inalando aquele produto enquanto via carrões chegando e saindo do escritório do seu patrão. Após um grande movimento, ele visualizou uma pequena silhueta observando pela pequena janela que dava precariamente a visibilidade do exterior. Era uma mulher de cabelos castanho claros soltos, com uma roupa preta composta de retalhos colados ao corpo, observando ele calmamente com os lábios coloridos de roxo. Quando ele a viu, parou de varrer e se levantou, mantendo o olhar que a mulher calmamente o proporcionava. Resgatado do estupor pela visão da mulher de preto, ele saiu do galpão e começou a circundar o local, a procura dessa pequena intrusa. Seria alguém que veio para as reuniões com seu patrão?
Ao sair do Galpão, deixando seus companheiros lá dentro ele notou o contraste gritante de uma estradinha de chão com caminhonetes gigantes de cores escuras, estacionadas de maneira descuidada. Depois de uma breve procura, decidiu voltar ao trabalho, mas ao observar de relance a porta do escritório, notou que a luz piscava e isto atiçou a sua curiosidade.
Cautelosamente começou a se aproximar do escritório, que era um verdadeiro tabu para todos que ali trabalhavam. O chefe havia os instruído que qualquer um que se aproximasse dali seria imediatamente demitido. Não se sabe se o fato de parar de respirar o ar úmido repleto de desinfetante ou a curiosidade foi o que o levou a abrir a porta em silêncio e ver o que acontecia lá dentro.
Ao entrar, visualizou uma pequena antesala com a parede revestida de madeira e móveis da mesma cor dando para duas portas, uma delas entreaberta. O homem se aproximou devagar e abriu a porta sem fazer barulho.
A cena que viu ao abrir a porta gelou seu estômago e nunca mais se apagou da sua lembrança.
Sobre uma enorme mesa de reuniões de vidro, se espalhava o sangue de no mínimo dez homens, todos ainda sentados e com o sangue escorrendo vagarosamente da garganta cortada para a mesa de vidro, onde se encontrava com o de outros cadáveres debruçados formando uma poça vermelha que pingava devagar para o chão de madeira.
Na ponta da mesa, estava a mulher de roupa preta acocorada em cima da mesa, de frente para aquele que antes deveria ser o seu chefe. A mulher com sincronia precisa, levantava uma pequena faca prateada e perfurava o peito do homem já morto, como se as facadas fizessem parte da música que ela alegremente cantarolava.
(Continua)

sexta-feira, 25 de março de 2016

Mea Culpa

Esta não é uma confissão, não é um manifesto de autopiedade. É, acima de tudo, uma descoberta. Estar na minha pele não é fácil, e longe de me apegar com unhas e dentes ao cliché comum de uma juventude entorpecida pela "espetacularização" de sentimentos, me refiro ao fato de eu por muito tempo me desconhecer. Não que estar dentro de qualquer pele seja fácil, a abstração nos presenteou, em resposta todos os bônus da ciência e da arte, o ônus da paranoia, dentre outros labirintos produzidos pela mente humana.
Durante muito tempo eu não agi correspondente ao que eu achava correto, fugi de mim, criei máscaras e identidades diferentes. A cada cidade, um nome diferente. A cada nome, uma camada por cima da pele, uma blindagem diferente, um analgésico contra a verdade.
Viver sob essas milhares de camadas produziu um efeito interessante, eu passei a interagir, sentir e experimentar o mundo de uma maneira opaca, medrosa, covarde. Experimentava o mundo através de uma camisinha ultragrossa que me fazia não sentir absolutamente nada além de tédio.
E esse tédio, o que me resultava? Em teorias, claro. Como o mundo para mim não bastava, eu criava o meu próprio mundo, repleto de conspirações contra o super-herói desta dimensão: eu!
Todos estavam contra mim e eu, de maneira elementar, resolvia todos os mistérios das pessoas malvadas que buscavam sabotar a minha felicidade! Haha, elas jamais esperavam que eu possuísse tamanha perspicássia. Os feri, antes mesmo de eles executarem o seu plano maléfico de me ferir.
E porque esse gigantesco teatro? Porque a minha cabeça pelo menos, sempre lutou contra as dimensões e infradimensões que eu criei pra me proteger, eu sabia no fundo que não era real. Mas eu também sabia que mergulhando a fundo, haveriam criaturas que eu não sabia se poderia domar. Temia ser devorado por elas. Melhor deixar ele tomar conta.

Eu me trancava em bunckers extremamente protegidos, evitava falar com as pessoas, mesmo falando com elas. Inventei um interlocutor mental, que fazia o intermeio entre o mundo e o meu mundo.
Como se fosse uma fronteira extremamente seletiva, que impedia qualquer imigrante de entrar, pelo que ele era e pelo que eu achava que ele era. O problema, é que este interlocutor era simpático, e começou a ser bem quisto em rodinhas de amigos. Ser convidado a botequins, ir a festas. Era bom de papo, claro, usava toda a minha biblioteca mental, o ingrato. Usava as minhas piadas, e eu observava do buncker fechado, ele se divertir enquanto eu continuava sem sentir o gosto de nada.

O problema é que eu e esse cara nos tornamos uma dupla imbatível, e ele acabou me convencendo dos paradigmas que eu havia criado como base da sua existência. Ele ganhou força, corpo, deixou o cabelo crescer e começou a cada vez mais me deixar pra trás. E eu ficava, porque eu era mau, eu feria as pessoas. Mas essa culpa é novidade não? Vamos recapitular. Quando as coisas davam certo, quando existia a diversão, era ele que curtia. Mas quando havia dor, decepção e quando eu feria antes de ser ferido, era eu que ouvia que era alguém que não se deveria confiar. Porém, a ironia reside no fato de que o cara que me buscava no fundo do poço era o mesmo que passava a me esconder em sua sombra. Eu era coagido e protegido ao mesmo tempo, eu tinha plena noção disso.

O problema foi que eu comecei a sumir, comecei a sentir cada vez menos vontade de sair daquele buncker, e comecei a pensar que eu, na verdade não existia. Quem existia era ele, porque, convenhamos, se ele é tão legal e eu sou tão nojento, valeria até a pena deixar de ser eu para ser ele. Divertido, mordaz, inteligente, engraçado, forte, implacável. Então eu tirei as mãos da direção e dormi.

Mas um dia a nós acordamos, invariavelmente. Seja pra urinar, ou pra tomar um gole d'água. E eu vi ele, forte, firme... e eu sofrendo as consequências disso, fraco, doente, cheio de alergias. Não havia ninguém do meu lado além dos meus fantasmas, dizendo que eu não deveria sair, que eu não era digno, que eu estragaria tudo. Foi necessária muita coragem, e um ensaio de pelo menos quatro anos, para tomar coragem de encarar ele, tão fortemente nutrido, e eu tão exposto e fraco.

Mas eu enfim encarei ele. E nós discutimos, até surgiu uma outra voz, que no meio do calor da discussão mediava os impropérios que ELE me dizia, e as verdades que eu jogava na sua cara, acho que essa voz do meio era a minha coerência. Se não fosse ela, talvez nós teríamos ido as vias de fato. Já estava cansado dele. Ele tinha namorada (o nome dela era Ignorância), e eu sozinho, me afogando em esquecimento e pústulas na pele. Ele tinha sucesso e prêmios, e eu só tinha o hobby de reforçar as paredes do meu cativeiro.

Durante muito tempo ficamos os três discutindo, e então, um dia, ELE parou de falar. Notei que quanto mais eu brigava, menos ele tinha argumentos. Porque os argumentos dele sempre se baseavam em um terrorismo que residia muito mais no que as pessoas achavam e queriam de mim, quanto do que eu realmente era. Então eu fui feroz, eu joguei a verdade na cara dele uma vez e outra, até que ele ficou mudo. Eu consegui extirpar a sua voz.

Vitória! Todos diriam, mas não é bem assim. Quando eu abri a porta do buncker, meus olhos já não estavam habituados a luz e todos os outros estímulos me feriam, eu era um bicho que desconfiava de tudo e de todos. As pessoas que conviviam com ELE, estranharam o meu modo de ser, e eu fiquei chateado que eles parecessem gostar mais dele, do que de mim. Dar voz e poder a ELE novamente foi meu primeiro pensamento, era tão mais fácil quando ele me livrava de todos os problemas. Mas não havia mais ele, havia eu, não era esta a opção. Então, eu aos pouquinhos comecei a tirar a poeira dos cômodos da minha mente e comecei a limpar a entrada do poço. Demorei 3 meses pra decidir fazer a decida.

Desci, e lá encontrei realmente monstros, grandes e poderosos. Não foi fácil a luta, principalmente porque desta vez eu estava sozinho, eu sentia dor, eu via com os meus olhos, eu falava pela minha boca e eu sentia na minha pele. Lá eu notei que a minha força era realmente minha, que tudo que ELE um dia foi, eu também era, e lutei. Não tenho certeza se matei os monstros, pois lutei no escuro, mas que eu assustei eles pra valer, aaah eu assustei. Porque, faz um tempinho eu não ouço um pio do fundo do poço, e quando eu passo lá pra ver, o silêncio respeitoso é perceptível. Essa vitória foi a maior da minha vida.

Mas em um aspecto, existe uma estigma muito grande em mim, uma cicatriz que diariamente eu passo a mão. Ele, me convenceu que eu era uma pessoa má. Eu, por outro lado, usando de todas as minhas armas, descobri que não era, na verdade. Mas que eu era impelido a desonestidade e a crueldade por medo, covardia de encarar a verdade e a dor. Encarar esta dor e passar a viver na minha pele enfim, fez com que eu desse valor a estar lúcido, e manter uma vigilância cada vez maior em qualquer possibilidade de eu viver uma ilusão novamente. De fechar a porta da realidade para os meus "ajudantes".

Mas a ferida de ouvir, de outros e de mim mesmo, que eu não era de confiança perdura. Eu ainda tenho marcada em mim cada uma das vezes que eu ouvi e disse para mim mesmo isso. Mas hoje, eu sei o que eu faço, porque não tenho intermediários para a minha existência, não vivo mediado por simulacros. Mas, ao se viver uma vez, passamos a desconfiar do que nós sentimos e pensamos. E esse foi o fantasma que restou, o da culpa. Sempre que eu reflito sobre os meus atos, o fantasma da culpa sussurra no meu ouvido: Viu, tu é mesmo tudo de pior, indigno, ridículo, fraco, traidor.
Mas eu não me deixo iludir mais, porque eu sei a verdade. E a verdade é a luz que manda embora qualquer ilusão, e eu me apego a ela como um filho medroso a uma mãe coruja. A verdade é a minha maior arma para lidar com os fantasmas da culpa. Com ela, eu passei a ter certeza do que eu sou, e do que eu quero. E independente do que a minha culpa fale, eu lembro que ela é somente uma voz vinda do passado, e que não encontra eco no que eu vivo hoje.

Hoje, eu vivo e sinto de verdade, não tenho medo de encarar meus fantasmas. Não minto para mim, não alimento intermediários e nem pretendo adoçar as percepções ácidas que a vida me traz. ELE, não existe mais. O fantasma da culpa perdura, advindo de outros tempos, mas cada vez menos nítido, mais fraco. Pois de mãos dadas a Verdade, até a Esperança resolveu me visitar.

Fechei o Buncker, comigo fora.




segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Olhos de descoberta

O que um olhar pode dizer? O que um olhar pode acessar? Tudo, apesar de as vezes nada. Não sou tão jovem quanto já fui, nem tenho tanta inocência quanto já tive, mas acredito que os olhos, nossa maneira de acessar o mundo, são os que mais mudam no processo de amadurecimento. Quando adultecemos, parece que o nosso olhar ganha um blur. E à nitidez da infância, são adicionados vários filtros: o da desconfiança, que torna tudo vermelho e perigoso. O da malícia, que desfoca tudo, a não ser aquele foco no centro. O da expertise, que adiciona textos e conceitos a coisas que antes apenas sentíamos.Também o filtro do preconceito, que aumenta os contrastes, adicionando e selecionando cores, as destacando de maneira artificial. Um dos filtros que adicionam aos nossos olhos, as vezes é mesmo o do desfoque, onde tudo que vemos são apenas vultos. Nos obrigando ficar imersos no nosso próprio mundo, infelizmente com menos cores do que as do sol. Ou filtros de saturação, que por melancolia dissimulam todas as cores, fazendo com que somente as formas sejam captadas, mas não sua gama de sombras, texturas, níveis e etc.
Dos degraus da minha idade, tentava manter todos os meus óculos no pescoço, pendurados para uma possível necessidade, como invejo as crianças. Elas sim enxergam o mundo como ele é, sem filtros, sem receios, no agora. Vivem o pra sempre em cada segundo.
Mas, da minha arrogância, de conhecedor de lentes e filtros, um dia conheci uma garota e me surpreendi com seus olhos. Ela não era uma criança, mas mesmo assim me olhava sem filtros.
Nem eu me via sem filtros.
Os olhos dela eram olhos de descoberta, olhos de criança que veem o sol pela primeira vez. E que por isso mesmo, se deliciam e sentem dor ao mesmo tempo. Desacostumados com a crueza e a nitidez da realidade. Os redondos e vivos olhos dela me remetiam a descortinamentos monumentais, que jamais eu, do alto da minha arrogância, acreditei que ainda sobreviveriam. Pensava que nas curvas do seu corpo, esse olhar talvez tivesse perdido o controle e caído pelo desfiladeiro da obsolecência. Ela olhava os meus olhos, como acredito que Colombo olhou a América, depois de anos de azul sem fim. Ela percorria as formas do meu sorriso, como Iracema observou aquele vulto crescer no mar. Desafiando suas verdades, aguçando seu medo, mas não desfazendo a sua deslumbrada curiosidade de saber o que era aquilo que seu mundo agora recebia.
Ela tinha os mesmos olhos que testemunharam o fogo tremeluzir pela primeira vez, e as chamas se insinuarem como pequenas dançarinas que luxuriosas lambiam seus dedos desbradores, ensinando a dor.
Os seus olhos de amêndoa eram dois precipícios que eu mergulhava e via estrelas nascerem e morrerem. O seu olhar era todo o universo, eram as bordas da existência que transbordam a razão em direção ao nada. Para que assim, o nada ao ser tocado, se tornasse algo, se tornasse verdade, existência.
Me tornei verdade seu primeiro pestanejar. Cada abrir de olhos uma descoberta.
Suas pestanas não eram somente a pobre pele que nos protege da realidade quando fugimos para o mundo dos sonhos. Mas sim as cortinas que abrem o espetáculo da realidade em sua verdade, talvez as vezes turvas, mas nunca dissimuladas, pelas lágrimas.
No momento em que senti o seu olhar, deixei de lado minhas lentes. Pois sabia que nada mais havia para esconder daquele olhar que ultrapassava meus panos, minhas armas, para olhar diretamente a minha alma.