Dentre todos os desejos provenientes da eterna insatisfação humana, seja de posição na sociedade, corte de cabelo, circunferência da barriga ou mesmo o número de gomos da mesma, elenco uma fantasia específica e até onde o entendimento popular pode alcançar, impossível. Estou falando da viagem no tempo.
Estamos já fartos de assistir embasbacados universos de livros e filmes falando da maravilha da viagem no tempo e as suas incidências. Sendo breve, podemos citar a série da trilogia “Back to the future”, com as grandiosas consequências para o bem e para o mal, como a mãe se apaixonar pelo próprio filho, ou mesmo o livre de apostas da época cair em mãos maliciosas. Mas nem iremos tão longe, o inocente “Vira-tempo” da Hermione Granger da série Harry Potter, usado para ela poder dar cabo da sua fome cada vez maior por conhecimento.
É sintomático que o homem possuí o desejo de voltar no tempo, de reviver o passado de uma maneira que acha mais coerente, remodelando o futuro a seu bel prazer. Porém, essa viagem, até onde se sabia, era impossível. Seja ela para o passado ou para o futuro.
Contudo, desprevenido leitor que bandeirantemente aguentou a introdução acima, sim, as viagens no tempo existem, e irei explicar o mecanismo da mesma.
O gatilho da viagem temporal, é um elemento específico, que obedece a algum dos nossos sentidos. Para cada pessoa, um elemento específico liga o vórtice temporal que o leva ao passado, pois do futuro falaremos no futuro. No meu caso, o gatilho da viagem temporal foi o Caldo de Cana.
Estava eu, andando pela cidade de Santa Maria, quando vejo uma banca já tradicional em que se vendiam cocadas, churros, pastéis e caldo de cana. Desprevenidamente, escolhi o caldo de cana para provar, deixando para trás todos os meus receios sobre a quantidade de açúcar que haveria num copo de plástico.
Ao primeiro gole, me senti engolfar por um turbilhão de lembranças e jogado a minha infância, aos meus tenros 8 anos, quando na casa da minha avó, minha maior diversão era eu mesmo colher a cana, para mim uma aventura, pois quem em sã consciência deixaria uma criança com uma faca na mão. E desbravar os sabores de qual das cores era mais adocicada. Revi meus primos, meus avós, meus tios nas manhãs tradicionais de domingo, onde antes de serem tocados pelo bichinho da discórdia, felizes ainda saboreavam o churrasco. Também revi, as brincadeiras entre eu e a minha irmã, fazendo comida com ovos de galinha roubados e panelas de cachorro, com fogueiras precariamente construídas, e com menos ainda consentimento dos pais.
Quando notei o que acontecia, novamente entrei em um turbilhão, e fui jogado a uma idade um pouco superior, mas não menos inocente onde, eu, minha irmã e minha mãe estávamos na cidade de Balneário Camboriú em uma excursão onde, quase metade da cidade pequena em que eu vivia compareceu. Que época boa, eu não tinha nenhum dinheiro nos bolsos. Como era bom não ter a responsabilidade de cuidar dos seus próprios interesses e a inocência de ter como seu maior anseio, mais de 2 milhos verdes no vapor por manhã. Lembro-me da estrutura da pousada e de achar um pedaço de osso na minha pizza de frango de almoço, fato que determinou com firmeza a minha tendência a nunca comer bobagens no almoço, e minha resistência a comer pizzas de frango, prefiro calabresa. Na verdade, prefiro não preferir a de frango.
Nessa viagem específica, pedi para a minha mãe um copo de caldo de cana gelado para refrescar o tórrido verão catarinense. Minha mãe, santa, aceitou me levar a banquinha de perto da praia onde se vendia a iguaria e me comprar um copo. A banca não era grande, mal cabia o senhor e a sua máquina de moer a cana no interior. Para mim era enorme, eu mal conseguia enxergar por cima da base do balcão. Porém, vi com prazer o senhor com seu cabelo já grisalho moer a cana de açúcar com grande barulho, passar a mesma por uma estrutura que tinha gelo e cair dentro de uma jarra fosca de plástico, onde continham mais ou menos 2 litros do precioso líquido que eu almejava. Ele então, colocou a jarra de lado e pegou, direto da máquina um copo cheio e gelado do sumo da cana e colocou no balcão para eu pegar.
Enquanto a minha mãe tirava o dinheiro para pagar o copo, eu decidi pegar o copo por mim, independente como sempre almejei, mas antes disso, precisava pegar os canudos de plástico para isso. Os canudos coloridos estavam um pouco além do meu alcance, em uma estrutura clássica de metal. Eu, sem pudor algum, fiquei nas pontas dos pés e alcancei os dois canudos que mais próximos de mim estavam, e os puxei. Ao puxar, a estrutura pesada do porta canudos pendeu para a direita, para esquerda e lentamente voltou a direita, porém com toda a força que o efeito do peso que o meu braço tinha gerado o proveu. Meu mundo parou nesse instante, foi como se em câmera lenta visse a estrutura de metal ir em direção a jarra de plástico, como se nada do meu lugar eu pudesse fazer.
A força do impacto foi forte como eu imaginei que seria, e a jarra de dois litros deslizou pelo metal molhado do balcão e caiu com estardalhaço dentro do chão da banquinha do senhor, que atônito, observou o movimento e o triste fim do caldo de cana.
Nesse momento, ficamos os três mudos, sentindo o que viria a seguir. Eu, envergonhado e apavorado com a quantidade exorbitante de dinheiro que aquele meu ato impensado geraria para a minha mãe. A minha mãe, discreta e elegante, desconcertada pelo ato do filho imprudente. E o senhor, pelo prejuízo gerado. Nesses instantes de apreensão, que pareceram durar anos, eu evitei olhar para a minha mãe, e fitei apavorado o senhor da banca, que desviou o olhar da minha mãe, me olhou e após um suspiro, sorriu e me alcançou o copo, por cima de um piedoso “Não tem problema, o copo é R$ 1,00”.
Fiquei emudecido quando notei que aquele senhor, que trabalhava dentro daquela estrutura de metal, havia abdicado de todo seu trabalho, somente para evitar o prejuízo, dos bolsos da minha mãe e das minhas orelhas, que temiam as puxadas. Minha mãe, desconcertada, não lembro até hoje que valor pagou, mas emendou uma conversa sobre descuido e sobre como o senhor havia sido legal comigo, ainda bem.
Nesse instante, perdido, retornei a realidade proveniente da minha primeira viagem no tempo.
Ofegante, sorri e tomei o resto do caldo de cana, porém, dessa vez sem viajar no tempo.
Depois dessa experiência, comprovei que sim, as viagens no tempo existem, e servem para que possamos rever no passado, ensinamentos que tivemos, sejam esses doloridos ou coloridos, com o objetivo de ao voltar a nossa época e aplicarmos da maneira mais fiel possível. A piedade do senhor grisalho me inspirou, após a viagem, a aplicar o fato de que muitas vezes o lucro, tão necessário para a sobrevivência, não é tão importante como o bem estar de saber que aquela mãe desconhecida, não castigaria as orelhas do filho descuidado.
Na maior parte das vezes, o maior lucro, é o que aprendemos. Pois nenhuma falência ou demissão tirará de nós a nobreza de um ato silencioso como o do senhor. Dinheiro, trabalhando a gente consegue.
Essa cara da banquinha era um santo, sério. E tu, um pentelho xarope uhUAHUhauhU
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