sexta-feira, 25 de março de 2016

Mea Culpa

Esta não é uma confissão, não é um manifesto de autopiedade. É, acima de tudo, uma descoberta. Estar na minha pele não é fácil, e longe de me apegar com unhas e dentes ao cliché comum de uma juventude entorpecida pela "espetacularização" de sentimentos, me refiro ao fato de eu por muito tempo me desconhecer. Não que estar dentro de qualquer pele seja fácil, a abstração nos presenteou, em resposta todos os bônus da ciência e da arte, o ônus da paranoia, dentre outros labirintos produzidos pela mente humana.
Durante muito tempo eu não agi correspondente ao que eu achava correto, fugi de mim, criei máscaras e identidades diferentes. A cada cidade, um nome diferente. A cada nome, uma camada por cima da pele, uma blindagem diferente, um analgésico contra a verdade.
Viver sob essas milhares de camadas produziu um efeito interessante, eu passei a interagir, sentir e experimentar o mundo de uma maneira opaca, medrosa, covarde. Experimentava o mundo através de uma camisinha ultragrossa que me fazia não sentir absolutamente nada além de tédio.
E esse tédio, o que me resultava? Em teorias, claro. Como o mundo para mim não bastava, eu criava o meu próprio mundo, repleto de conspirações contra o super-herói desta dimensão: eu!
Todos estavam contra mim e eu, de maneira elementar, resolvia todos os mistérios das pessoas malvadas que buscavam sabotar a minha felicidade! Haha, elas jamais esperavam que eu possuísse tamanha perspicássia. Os feri, antes mesmo de eles executarem o seu plano maléfico de me ferir.
E porque esse gigantesco teatro? Porque a minha cabeça pelo menos, sempre lutou contra as dimensões e infradimensões que eu criei pra me proteger, eu sabia no fundo que não era real. Mas eu também sabia que mergulhando a fundo, haveriam criaturas que eu não sabia se poderia domar. Temia ser devorado por elas. Melhor deixar ele tomar conta.

Eu me trancava em bunckers extremamente protegidos, evitava falar com as pessoas, mesmo falando com elas. Inventei um interlocutor mental, que fazia o intermeio entre o mundo e o meu mundo.
Como se fosse uma fronteira extremamente seletiva, que impedia qualquer imigrante de entrar, pelo que ele era e pelo que eu achava que ele era. O problema, é que este interlocutor era simpático, e começou a ser bem quisto em rodinhas de amigos. Ser convidado a botequins, ir a festas. Era bom de papo, claro, usava toda a minha biblioteca mental, o ingrato. Usava as minhas piadas, e eu observava do buncker fechado, ele se divertir enquanto eu continuava sem sentir o gosto de nada.

O problema é que eu e esse cara nos tornamos uma dupla imbatível, e ele acabou me convencendo dos paradigmas que eu havia criado como base da sua existência. Ele ganhou força, corpo, deixou o cabelo crescer e começou a cada vez mais me deixar pra trás. E eu ficava, porque eu era mau, eu feria as pessoas. Mas essa culpa é novidade não? Vamos recapitular. Quando as coisas davam certo, quando existia a diversão, era ele que curtia. Mas quando havia dor, decepção e quando eu feria antes de ser ferido, era eu que ouvia que era alguém que não se deveria confiar. Porém, a ironia reside no fato de que o cara que me buscava no fundo do poço era o mesmo que passava a me esconder em sua sombra. Eu era coagido e protegido ao mesmo tempo, eu tinha plena noção disso.

O problema foi que eu comecei a sumir, comecei a sentir cada vez menos vontade de sair daquele buncker, e comecei a pensar que eu, na verdade não existia. Quem existia era ele, porque, convenhamos, se ele é tão legal e eu sou tão nojento, valeria até a pena deixar de ser eu para ser ele. Divertido, mordaz, inteligente, engraçado, forte, implacável. Então eu tirei as mãos da direção e dormi.

Mas um dia a nós acordamos, invariavelmente. Seja pra urinar, ou pra tomar um gole d'água. E eu vi ele, forte, firme... e eu sofrendo as consequências disso, fraco, doente, cheio de alergias. Não havia ninguém do meu lado além dos meus fantasmas, dizendo que eu não deveria sair, que eu não era digno, que eu estragaria tudo. Foi necessária muita coragem, e um ensaio de pelo menos quatro anos, para tomar coragem de encarar ele, tão fortemente nutrido, e eu tão exposto e fraco.

Mas eu enfim encarei ele. E nós discutimos, até surgiu uma outra voz, que no meio do calor da discussão mediava os impropérios que ELE me dizia, e as verdades que eu jogava na sua cara, acho que essa voz do meio era a minha coerência. Se não fosse ela, talvez nós teríamos ido as vias de fato. Já estava cansado dele. Ele tinha namorada (o nome dela era Ignorância), e eu sozinho, me afogando em esquecimento e pústulas na pele. Ele tinha sucesso e prêmios, e eu só tinha o hobby de reforçar as paredes do meu cativeiro.

Durante muito tempo ficamos os três discutindo, e então, um dia, ELE parou de falar. Notei que quanto mais eu brigava, menos ele tinha argumentos. Porque os argumentos dele sempre se baseavam em um terrorismo que residia muito mais no que as pessoas achavam e queriam de mim, quanto do que eu realmente era. Então eu fui feroz, eu joguei a verdade na cara dele uma vez e outra, até que ele ficou mudo. Eu consegui extirpar a sua voz.

Vitória! Todos diriam, mas não é bem assim. Quando eu abri a porta do buncker, meus olhos já não estavam habituados a luz e todos os outros estímulos me feriam, eu era um bicho que desconfiava de tudo e de todos. As pessoas que conviviam com ELE, estranharam o meu modo de ser, e eu fiquei chateado que eles parecessem gostar mais dele, do que de mim. Dar voz e poder a ELE novamente foi meu primeiro pensamento, era tão mais fácil quando ele me livrava de todos os problemas. Mas não havia mais ele, havia eu, não era esta a opção. Então, eu aos pouquinhos comecei a tirar a poeira dos cômodos da minha mente e comecei a limpar a entrada do poço. Demorei 3 meses pra decidir fazer a decida.

Desci, e lá encontrei realmente monstros, grandes e poderosos. Não foi fácil a luta, principalmente porque desta vez eu estava sozinho, eu sentia dor, eu via com os meus olhos, eu falava pela minha boca e eu sentia na minha pele. Lá eu notei que a minha força era realmente minha, que tudo que ELE um dia foi, eu também era, e lutei. Não tenho certeza se matei os monstros, pois lutei no escuro, mas que eu assustei eles pra valer, aaah eu assustei. Porque, faz um tempinho eu não ouço um pio do fundo do poço, e quando eu passo lá pra ver, o silêncio respeitoso é perceptível. Essa vitória foi a maior da minha vida.

Mas em um aspecto, existe uma estigma muito grande em mim, uma cicatriz que diariamente eu passo a mão. Ele, me convenceu que eu era uma pessoa má. Eu, por outro lado, usando de todas as minhas armas, descobri que não era, na verdade. Mas que eu era impelido a desonestidade e a crueldade por medo, covardia de encarar a verdade e a dor. Encarar esta dor e passar a viver na minha pele enfim, fez com que eu desse valor a estar lúcido, e manter uma vigilância cada vez maior em qualquer possibilidade de eu viver uma ilusão novamente. De fechar a porta da realidade para os meus "ajudantes".

Mas a ferida de ouvir, de outros e de mim mesmo, que eu não era de confiança perdura. Eu ainda tenho marcada em mim cada uma das vezes que eu ouvi e disse para mim mesmo isso. Mas hoje, eu sei o que eu faço, porque não tenho intermediários para a minha existência, não vivo mediado por simulacros. Mas, ao se viver uma vez, passamos a desconfiar do que nós sentimos e pensamos. E esse foi o fantasma que restou, o da culpa. Sempre que eu reflito sobre os meus atos, o fantasma da culpa sussurra no meu ouvido: Viu, tu é mesmo tudo de pior, indigno, ridículo, fraco, traidor.
Mas eu não me deixo iludir mais, porque eu sei a verdade. E a verdade é a luz que manda embora qualquer ilusão, e eu me apego a ela como um filho medroso a uma mãe coruja. A verdade é a minha maior arma para lidar com os fantasmas da culpa. Com ela, eu passei a ter certeza do que eu sou, e do que eu quero. E independente do que a minha culpa fale, eu lembro que ela é somente uma voz vinda do passado, e que não encontra eco no que eu vivo hoje.

Hoje, eu vivo e sinto de verdade, não tenho medo de encarar meus fantasmas. Não minto para mim, não alimento intermediários e nem pretendo adoçar as percepções ácidas que a vida me traz. ELE, não existe mais. O fantasma da culpa perdura, advindo de outros tempos, mas cada vez menos nítido, mais fraco. Pois de mãos dadas a Verdade, até a Esperança resolveu me visitar.

Fechei o Buncker, comigo fora.




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